lei de bases da saúdeAnálise critica da CGTP-IN relativamente à Proposta de Lei de Bases da Saúde, apresentada pela Comissão nomeada pelo Ministério da Saúde.

Para a CGTP-IN qualquer revisão da actual Lei de Bases da Saúde deve ter presente o artigo 64 da CRP, que assume o direito à saúde como um direito social fundamental que se concretiza mediante a criação de um serviço nacional de saúde universal, geral e gratuito, competindo ao Estado garantir o acesso dos cidadãos a todos os cuidados de saúde, independentemente da sua condição económica e social, em situação de plena igualdade.

Foi tendo presente este comando constitucional que foi criado em 1979 o Serviço Nacional de Saúde como uma rede de órgãos e serviços prestadores de cuidados de saúde globais a toda a população, através do qual o Estado passou a ser responsável pela concretização do direito à protecção da saúde através de um sistema de saúde inteiramente público na sua organização, gestão e financiamento.

Um comando que foi alterado em 1990, com a publicação da Lei de Bases da Saúde que, sem pôr em causa a existência do Serviço Nacional de Saúde, alterou radicalmente a situação.

Com efeito, a Lei de Bases de 1990 introduziu o conceito de sistema de saúde, paralelo ao Serviço Nacional de Saúde, para permitir a entrada do sector privado, de modo a colocar o SNS como apenas um dos componentes do sistema a par do sector privado e também do sector social, que foi, entretanto, readquirindo um protagonismo que havia perdido com a fundação do SNS.

Estas alterações abriram a porta à gestão privada na saúde e, mais tarde, à introdução das Parcerias público-privadas na saúde; a uma crescente promiscuidade entre sector público e sector privado na prestação de cuidados de saúde; ao progressivo e descontrolado crescimento e valorização do sector privado da saúde em detrimento do sector público; à reentrada do sector social na área da saúde, incluindo a devolução de alguns hospitais às misericórdias; ao aumento das desigualdades e dificuldades de acesso por parte da população mais desfavorecida; ao desvirtuamento dos regimes das carreiras dos profissionais da saúde; ao subfinanciamento e à degradação do Serviço Nacional de Saúde, resultando em graves deficiências na prestação de cuidados de saúde de qualidade às populações.

A tudo isto acresce ainda o fim da gratuitidade da prestação de cuidados de saúde no âmbito do SNS, que foi em primeiro lugar potenciada por uma alteração constitucional que introduziu a ideia de gratuitidade tendencial, e depois sucessivamente aprofundada pela criação e contínuo agravamento do valor das chamadas taxas moderadoras.

É neste contexto que, ao invés de romper com a crescente intromissão do sector privado no SNS, a Comissão de Revisão da Lei de Bases da Saúde, designada pelo Ministério da Saúde, não só não aponta medidas eficazes para reforçar a capacidade de resposta do Serviço Nacional de Saúde, como pretende continuar a fazer deste um financiador dos interesses do sistema privado, porquanto:

- Mantém os sectores privado e público dentro do sistema de saúde, a par do Serviço Nacional de Saúde continuando a dar-lhes um papel central – valoriza o conceito de prestações públicas de saúde, que podem ser prestadas indiscriminadamente pelo Serviço Nacional de Saúde, pelo sector privado ou pelo sector social, mas todas financiadas pelo Orçamento do Estado, em detrimento do papel e dos recursos que deviam ser atribuídos ao próprio SNS;

- Garante a manutenção e criação de parcerias público-privadas na saúde;

- Admite os princípios da gestão privada nos hospitais e outros estabelecimentos e serviços do SNS;

- Não contempla regras claras relativas ao reforço do financiamento do SNS de modo a garantir a sua sustentabilidade presente e futura – por exemplo, refere o princípio de que o financiamento público deve aproximar-se progressivamente da média da UE, mas não define regras claras nem indica fontes adicionais de financiamento;

- Não elimina as taxas moderadoras (apesar de prever algumas limitações aos respectivos montantes);

- Prevê que os trabalhadores e aposentados da Administração Pública paguem em duplicado, ou seja, através dos impostos, como a generalidade dos portugueses para terem acesso ao SNS, e através dos descontos para a ADSE;

- Não dá a devida importância à valorização das carreiras profissionais.

Face ao exposto, a CGTP-IN considera que o fortalecimento do Serviço Nacional de Saúde passa, necessariamente, por:

- Colocar o Serviço Nacional de Saúde no centro do sistema de saúde, remetendo os sectores privado e social para um papel meramente supletivo e não concorrencial;

-Eliminar as parcerias público-privadas na saúde;

- Revalorizar a gestão pública na saúde, eliminando as promiscuidades com o sector privado a todos os níveis;

- Revogar as taxas moderadoras, repondo a gratuitidade da prestação de cuidados de saúde;

- Reconhecer e valorizar os cuidados de saúde primários como centro e espinha dorsal do sistema de saúde, indispensável para obter os maiores ganhos em saúde e um melhor nível de satisfação das populações;

- Reconhecer a imperatividade de alargar a rede pública de cuidados continuados integrados, tendo em conta a necessidade de dar resposta a uma população cada vez mais envelhecida e dependente;

- Valorizar as profissões de saúde, nomeadamente através do reconhecimento das respectivas carreiras, melhoria da retribuição e das condições de trabalho;

- Disponibilizar ao Serviço Nacional de Saúde todos os recursos humanos, técnicos e financeiros necessários para prestar às populações todos os cuidados de saúde, com a devida qualidade e em tempo útil.

Em conclusão, a CGTP-IN entende que uma nova Lei de Bases da Saúde deve colocar o Serviço Nacional de Saúde, universal, geral e gratuito, como o centro e o eixo fundamental do nosso sistema de saúde, procedendo à sua refundação e à alteração profunda da actual concepção de sistema de saúde, e obrigando o Estado a disponibilizar todos os recursos necessários para garantir às populações a efectivação do seu direito à protecção da saúde, objectivos que esta Proposta de Lei de Bases claramente não satisfaz, limitando-se a proceder a alterações cosméticas de perspectiva, mas na prática deixando tudo na mesma.

Lisboa, 19 de Julho de 2018