digital sstComo ficam as condições de segurança e saúde no trabalho na era dos “nómadas digitais”, dos “tarefeiros on-line”, dos “jornaleiros virtuais”, no fenómeno que alguns convencionaram apelidar de “uberização” da economia e, consequentemente, do trabalho? Será o desafio da SST tão distinto do que era aquando do tempo das praças de jorna ou dos biscateiros? Não nos parece... Porque, no final, tudo se resume ao mesmo binómio: quem é que gere e organiza as actividades delas extraindo mais valia; quem é que presta a atividade a troco de uma retribuição – diária, semanal, mensal, à peça - sofrendo com os efeitos nocivos que essa mesma actividade implica.

Sob a capa do desfasamento espacial e temporal na relação patrão-trabalhador, cria-se a ideia da “novidade e modernidade” da relação laboral estabelecida, aproveitando-se esse suposto vazio regulatório para transferir para o trabalhador grande parte dos custos de produção.

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Por muitas voltas que dêem os teóricos da “economia digital”, utilizando fórmulas gastas como “lei velha não se pode aplicar a novas relações”, ou “fórmulas ultrapassadas não resolvem problemas novos”, a verdade é que, na sua natureza, as fórmulas utilizadas para a contratação de mão de obra neste sector económico, em nada inovam relativamente a formas anteriores de exploração, nem tão pouco ultrapassam ou superam a contradição que está presente em todas as formas atuais, passadas ou futuras de contratação de mão de obra: a exploração da mais valia produzida por quem trabalha.

Neste sentido, também no domínio da Segurança e Saúde no Trabalho a contradição continua a existir: quem retira o maior rendimento económico da actividade não é quem sofre, na maior das proporções, os acidentes e as doenças resultantes dos riscos profissionais. No fundo, seja na economia digital, seja na economia tradicional, quem vende a mão de obra a troco de uma pequena parcela do que produz é quem, ainda por cima, sofre o grosso dos danos fisicos, psicológicos e sociais resultantes da actividade prestada. Esta contradição demonsta, em si mesma, que no fundo nada disto é novo, difuso ou indeterminado.Na sua natureza material intrínseca, os desafios regulatórios continuam a ser os mesmos que existem para qualquer outro sector económico. A diferença está, tão só, na mediação tecnológica e na utilização das possibilidades tecnológicas do ponto de vista económico. A diferença, portanto, está na utilização de meios de produção diferentes. Em vez de uma máquina, que obriga – à partida – a uma presença constante junto da mesma, temos uma plataforma informática que permite um desfasamento espacial e temporal (a distância) na prestação da atividade, conferindo maior flexibilidade organizacional a quem gere e explora a actividade. A entidade patronal, em vez de ter o trabalhador num só local, durante um horário, pode tê-lo em qualquer parte, quando quer e, ainda por cima, removendo os custos decorrentes da infraestrutura laboral.

Mas não são apenas os custos infraestruturais que se tentam transferir para o trabalhador. São os custos com a organização da atividade, em particular com a SST, com os acidentes de trabalho e com as doenças profissionais. Sob a capa do desfasamento espacial e temporal na relação patrão-trabalhador, cria-se a ideia da “novidade e modernidade” da relação laboral estabelecida, aproveitando-se esse suposto vazio regulatório para transferir para o trabalhador grande parte dos custos de produção. Quanto à “uberização” em si, nada de novo também, uma vez que, para além do desfasamento espacial e temporal adiciona-se o elemento “intermediação” entre quem presta a actividade e quem dela usufrui, extraindo daí uma mais valia, com total desresponsabilização relativamente aos danos para a saúde e segurança – e não apenas estes -, para quem presta a actividade e faz dela a sua profissão. O que terá isto de diferente de muitas outras formas existentes de intermediação, que visam apenas apropriar-se de uma parte da mais valia produzida, em geral, à custa de quem aproduz com o seu trabalho? No final, é o trabalhador quem sofre os danos a troco de uma parcela, cada vez mais ínfima da riqueza produzida e, ao contrário do que sucede com o Contrato de Trabalho, não tem qualquer direito à reparação desses danos, a não ser que, mais uma vez, adquira um seguro de reparação de acidentes de trabalho.

Mas terá de ser assim? Teremos de aceitar que também este ónus tenha de recair sobre quem é o elo - social e económicamente - mais frágil desta cadeia?

Estas e outras questões, de grande relevância em matéria de garantia das condições de SST aplicáveis ao trabalho “digital”, ganham uma importância exponencial quando vistas à luz da “revolução digital”. E esta maior importância aprofunda-se ainda mais quando a dinâmica contratual privilegiada pelas entidades patronais se realiza sob a capa – na maior parte dos casos abusiva e ilegítima-, do “contrato de prestação de serviços”.

Ora, na prestação e serviços, é ao trabalhador que cabe a organização da sua actividade e da sua proteção contra os riscos laborais. A não ser que, como prevê a Lei 102/2009 no seu artigo 4.º al) a), estejamos perante um caso de “dependência económica” então, assim sendo, a organização da SST já cabe a quem explora a actividade. Contudo, em que consiste esta dependência económica? Em geral, jurisprudência e doutrina convencionaram considerar-se a dependência económica como: a “exclusividade de emprego e de salário na esfera económica de outrem e a incorporação (integral) do processo produtivo do prestador de serviços no processo produtivo daquele que recebe o produto da sua actividade” in Acórdão da TRL n.º 186/09.9TTLRA.L1-4.

Não será isto o que se passa com quem trabalha a partir da Uber ou Cabify, da Amazon Turks ou Taskrabbit? Defenderão os arautos da “nova economia” que estes são apenas “intermediários”. Nuns casos sim, noutros não (no caso da Amazon Turks, o contrato é feito com a Amazon). Mas, mesmo nesses casos, não se tratará de uma relação similar à das agências de contratação? As agências de trabalho temporário, angariam clientes com necessidade de mão de obra e depois contratam trabalhadores para o efeito, apropriando-se de uma parcela da riqueza produzida em função da actividade de mediação prestada, comportando-se como parasitas. O mesmo se passa com as plataformas digitais como a Uber ou a Cabify, fazendo uma ponte entre o comprador e o prestador, apropriando-se de uma parcela da riqueza produzida em função da actividade de mediação prestada. Mas não nos podemos esquecer que são estas que organizam, angariam, gerem e publicitam a actividade. O negócio é seu, não é do prestador de serviço. E o prestador de serviço pode, como sucede na maioria dos casos, encontrar-se numa situação de total dependência económica. Os casos apresentados serão assim tão diferentes na sua natureza? Não nos parece. Parece-nos que se utiliza a suposta “modernidade tecnológica” para criar a ideia de que se tratam de actividades que “saltam” fora do esquema regulatório”, tornando-as verdadeiros “feudos” de desregulamentação laboral que agravam a exploração de quem trabalha, criando problemas sociais, económicos e humanos para toda a sociedade. E tal sucede pelos danos que provocam e fazem incidir sob os proprios trabalhadores, criando situações de verdadeira e inaceitável miséria humana, quando alguém que se acidenta ou adoece, por falta de prevenção e proteção, e deixa de poder trabalhar, caindo na pobreza e exclusão social. Lembremo-nos que o ónus desta desproteção incide sobre a sociedade, a sociedade que paga a maioria dos impostos, ou seja, a sociedade dos trabalhadores.

Assim, esta é uma luta pela dignidade e pela dignificação do trabalho, contra uma tentativa de fazer voltar o mundo ao século XVIII, a uma era em que o direito do trabalho e o direito à SST simplesmente não existiam. Desde logo, um dos primeiros passos para regulamentar esta matéria na era da “revolução digital”, seria, desde logo, estabelecer em que parâmetros as entidades que exploram teletrabalho, trabalho a distância ou trabalho mediado por plataformas on-line, deveriam assentar a sua obrigação de protecção dos trabalhadores contra os riscos profissionais.

A título exemplificativo, eis alguns desses parâmetros:

Adequação ergonómica das ferramentas informáticas a utilizar

Falamos dos programas e plataformas usados. Da sua adaptabilidade visual e funcional ao utilizador (o “user friendly” para usar a linguagem globish da “modernidade digital”), como a psicodinâmica das cores, a quantidade de cliques ou de operações no teclado por cada acto praticado, permitindo ao operador produzir o mesmo resultado com o menor esforço...

Adequação ergonómica dos instrumentos digitais, sejam telemóveis, tablets ou computadores

Neste caso, devem aplicar-se as regras que já existem para os instrumentos dotados de isor, mas não só. Devem pensar-se novas regras para o uso de telemóveis e tablets, ou seja, equipamentos dotados de visor do tipo móvel.

Adequação ergonómica do espaço laboral utilizado pelo trabalhador

Nomeadamente a aquisição e fornecimento de equipamentos adequados, sejam estes adquiridos por quem explora a actividade ou por ele financiados, libertando o “trabalhador digital” do esforço de ser ele a custear toda a compra dos meios de produção, com todas as repercussões que tal pode ter na qualidade dos mesmos e na sua adequação em matéria de SST.

Exames médicos adequados (nomeadamente para os olhos, braços, pulsos, pescoço e as zonas corporais masi afectadas pelo trabalho mediado por plataformas digitais, incluindo os do foro psicossocial)

A realidade dos trabalhadores a recibo verde é a realidade da inexistência de saúde preventiva ocupacional. Quando estes trabalhadores contraem uma doença incapacitante, a falta de seguro e de descontos adequados para a Segurança Social fazem com estes trabalhadores sejam atirados em situações de miséria absoluta com todos os danos sociais e humanso qeu daí advêem para todos nós.

Regulação das questões ligadas à privacidade e aos dados pessoais destes trabalhadores

Que dados podem fornecer, que tipo de dados podem tratar e movimentar, como proteger-se relativamente às tentativas de intromissão dos donos das plataformas na sua vida pessoal. Não esqueçamos que muitas destas empresas são empresas transnacionais, que operam à margem das legislações nacionais, sob o pretexto da inexistência de “sede” no país em que operam.

Regulação das questões ligadas às condições de trabalho

Neste caso referimo-nos aos registos que estas plataformas devem fazer de honorários pagos, descontos realizados, horas de trabalho prestadas, tempo em que o trabalhador esteve disponível on-line, quantidade de actos praticados e outras variáveis que permitam medir a quantidade e qualidade do trabalho prestado, por forma a controlar os limites legais aplicáveis ao tempo de trabalho, ou outras situações como o ritmo excessivo de trabalho, ausência de pausas de trabalho, etc...

A mudança é inexorável e a era digital já chegou há mais de 20 anos. As soluções que defendemos e que, até prova em contrário, continuam adequadas, são todos os dias renegadas e contronadas por quem quer destruir o edifício jus-laboral enquanto pilar civilizacional. Cabe-nos lutar contra esta ofensiva retrógrada que insiste em utilizar o “novo” como disruptivo para os direitos sociais e laborais. Cabe a cada sociedade e em cada momento histórico enquadrar as inovações de acordo com os principios que são tidos como válidos. Nem tudo o que é novo é bom e nem tudo o que é moderno é aceitável, principalmente quando se estabelece à custa da dignidade humana. Garantir o direito à SST na era digital faz parte da luta pelo emprego futuro com qualidade.

Por Hugo Dionísio

Departamento de SST da CGTP-IN
2018