trabalho digitalO sistema económico em que vivemos, tende a desumanizar cada vez mais o trabalho, colocando o trabalhador atrás dos interesses das organizações, do lucro e do resultado e, neste ambiente utilitarista, assistimos ao surgimento (e ressurgimento) de problemas de saúde e segurança que, com a tecnologia que possuímos, deveriam fazer parte do passado. No fundo, as tendências tecnológicas que têm sido introduzidas no trabalho, têm servido, essencialmente para agravar a exploração, através das mais diversas formas, constituindo um sério ataque aos sistemas de protecção dos direitos dos trabalhadores, entre eles a SST (Segurança e Saúde no Trabalho).

 Em geral, os problemas, desafios e obstáculos que caracterizam o estado da SST a nível mundial têm uma natureza comum., estando intimamente ligadas aos problemas laborais que afectam os trabalhadores e que, por sua vez, são uma repercussão do modelo económico existente, e que se tem vindo a agravar com as políticas de austeridade, a precariedade laboral – apelidada, actualmente, de “emprego atípico” -, bem como a utilização da digitalização, robótização e, de uma forma geral, da revolução tecnológica, tudo utilizado para aumentar a exploração dos trabalhadores.

Assistimos, nos mais diversos sectores de actividade, a um transformação tecnológica da actividade económica e do trabalho, que traz consigo a robotização, a sofisticação dos sistemas de produção, etc. Contudo, estas alterações têm, por sua vez, conduzido ao aumento da intensidade da relação trabalhador/meio de trabalho, obrigando o trabalhador a uma atenção, concentração e entrega cada vez maiores, diminuindo a sua liberdade de acção e a sua capacidade de introduzir alterações ao seu sistema de trabalho.

Essa diminuição da capacidade que cada trabalhador tem de controlar a cadência, ritmo e velocidade da actividade que desenvolve, tem produzido um sem número de riscos profissionais emergentes, ligados às posturas, movimentos repetitivos, riscos psicossociais... Por outro lado, esta intensificação do trabalho, assente na transformação tecnológica, reforçou, nuns casos e reintroduziu, noutros, a pretensão que as entidades patronais têm para deixar de fora do tempo de trabalho útil tudo o que tenha a ver com descanso e recuperação (pausas, paragens, refeições), introduzindo esse tempo de descanso, fora do “período efectivo de trabalho”. Veja-se, a este respeito, o que se passa na grande distribuição, com a contratação em massa de trabalhadores com horários de trabalho de 5 horas diárias – atempo parcial, portante -, sem qualquer intervalo para refeição ou pausa para descanso, deixando todos esses tempos de fora do “tempo efectivo”.

Para além do agravamento da exploração que esta situação provoca, na medida em que, na prática, aumenta a proporção do “tempo de trabalho efectivo” no período normal de trabalho, tal situação obriga os trabalhadores a uma pressão temporal enorme, traduzida em mais actividade efectiva, mais prolongada no tempo, com menos tempo de descanso e recuperação dos esforços, que tem provocado um surto de problemas musuculo-esquelecticos, que são hoje uma verdadeira epidemia dos tempos modernos, principalmente nos países mais desenvolvidos.

Mas se este é um problema que se vive com mais gravidade nos países insustrializados e nos quais o trabalho é mais mediado pela tecnologia, também nos países em vias de desenvolvimento encontramos esta realidade, a par de outras realidades sectoriais, ligadas por exemplo à agricultura, à extracção mineira, à construção, etc., tudo actividades com taxas de incidência de sinitralidade laboral elevadíssimas. No fundo, se nos países desenvolvidos o paradigma tem transitado de um ambiente de trabalho caracterizado sobretudo por acidentes de trabalho para um ambiente de trabalho mais propício a doenças profissionais e doenças relacionadas com o trabalho, nos paises em vias de desenvolvimento, a situação agrava-se, pela convivência dos dois paradigmas.

Para se ter uma ideia, no que respeita à convenção n.º 155 da OIT, que estabelece as regras de organização da Segurança e Saúde no Trabalho, são ainda hoje mais os países que não a ratificaram, do que aqueles que a ratificaram. Entre os que não a ratificaram, encontram-se importantes pólos industriais como os EUA, india, indonésia, Paquistão, grande parte da África, Ásia e América Latina, que como se sabe são importantes pólos de industrialização e de exploração do sector primário.

Mas, por exemplo, no que respeita à convenção n.º 187 de 2006, relativa à criação de “Quadro de promoção da segurança e saúde no trabalho”, a situação ainda é mais grave, com muitos países desenvolvidos de fora do processo de ratificação. É claro que, muitos destes, são países europeus, mas se considerarmos que, os sistemas públicos de promoção e inspecção da SST foram alvo de enormes ataques por via das alterações à legislação laboral e por via das políticas de austeridade, então, não podemos considerar que a situação global da SST tenha vindo a melhorar.

O futuro do trabalho e a SST

A par, e em relação com o ataque sos direitos ligados à organização do tempo de trabalho, outro dos mais fortes ataques contemporâneos à SST tem sido a precariedade laboral, que se repercute nos vínculos perenes e efémeros, em horários desregulados, retribuições variáveis e na descaracterização dos enquadramentos funcionais. Se a esta realidade adicionarmos o ambiente de competitividade desenfreada em que se encontram todas as organizações; se adicionarmos a incerteza face ao futuro, a mudança constante e a incapacidade para lidar com a mesma; resultado podemos encontra-lo na profusão enorme de situações de doença psicossocial, nas quais podemos enquadrar o stress laboral, a depressão crónica ou o esgotamento nervoso.

A tendência mundial, de acordo com o estudo da OIT “Non-Standard Employment Around the World”, de 2016, é a de que o n.º de trabalhadores sujeitos às “formas atípicas de emprego”, nas quais se enquadra o trabalho temporário, a termo, informal, parcial, auto-emprego, entre outras., tem vindo, de um modo geral, a crescer.

A este propósito, e cruzando esta tendência com a digitalização e robotização da actividade económica e do trabalho, importa, por exemplo, referir que, quando comparamos o tipo de relação de trabalho que está na base do “emprego on-line”, constatamos que, na maioria dos casos, se trata de emprego sem garantias contratuais, de baixa qualificação, sem garantias de SST, sem limite de tempo de trabalho... Não podemos esquecer que, plataformas como a Ubber, a Amazon Mechanical Turks, Task-rabbit ou click-worker, têm vindo a ver o seu espaço de penetração muito incrementado, principalmente em mercados emergentes como a India, bem como nos Estados Unidos entre outros.

Mas não é só no domínio do trabalho com plataformas digitais que se assiste à digitalização da actividade produtiva. Esta realidade está presente em qualquer empresa que faça a gestão dos processos por via informática, obrigando os trabalhadores a uma maior interação com equipamentos dotados de visor, teclados e equipamentos de controle remoto. Outro aspecto desta realidade está também na capacidade de vigilância e monitorização dos trabalhadores. Se numa linha de montagem, sempre que um trabalhador vai à casa de banho, tem de aceder a um controlo e colocar o seu posto de trabalho em “off”; se sempre que se acaba uma palete se coloca uma etiqueta com um nome, permitindo medir a quantidade de trabalho por unidade de tempo; qualquer destas situações, levantam problemas de vigilância a distância dos trabalhadores, dos tempos de paragem, mesmo que para satisfação de coisas tão humanas como as necessidades fisiológicas.

Em resumo, há que dizer que o sistema económico em que vivemos, tende a desumanizar cada vez mais o trabalho, colocando o trabalhador atrás dos interesses das organizações, do lucro e do resultado e, neste ambiente utilitarista, assistimos ao surgimento (e ressurgimento) de problemas de saúde e segurança que, com a tecnologia que possuímos, deveriam fazer parte do passado. No fundo, as tendências tecnológicas que têm sido introduzidas no trabalho, têm servido, essencialmente para agravar a exploração, através das mais diversas formas, constituindo um sério ataque aos sistemas de protecção dos direitos dos trabalhadores, entre eles a SST.

Em suma, o estado da SST ao nível mundial e comunitário pode caracterizar-se como sendo um estado de retrocesso, que sofre com o retrocesso nos direitos laborais, em geral, entre eles o direito à prevenção.

Perspectivas futuras

A redução do tempo de trabalho, a introdução de tempos de descanso e a sua contabilização como “tempo de trabalho”, a exigência global de regras claras sobre Segurança e Saúde no Trabalho, a valorização da participação dos trabalhadores nesta matéria constituem e constituirão sempre, factores essenciais da luta por melhores condições de trabalho.

Mas acima de tudo é fuundamental alterar este paradigma económico, este modo de organização das relações de produção, cujo objectivo é o lucro e não a satisfação das necessidades É urgente fazê-lo para que se possa aproveitar a revolução tecnológica para reduzir a exploração e com ela, afastar trabalhadores das situações de risco, para as minimizar ou eliminar e não o inverso. Em suma, há que colocar a tecnologia ao serviço dos trabalhadores e dos povos e não enquanto instrumento da sua exploração, seja como trabalhadores, seja enquanto consumidores.

Por Hugo Dionísio